André Valim é meu aluno. Um outro dia compartilhou comigo a poesia de um recorte de jornal. Recorte já amarelado pelo tempo, mas que André guarda com carinho, pois o recebeu do próprio pai, pessoa íntegra e sensível. Gostei muito do texto e pedi que ele o me enviasse. Infelizmente, pelo recorte não se pode saber quem foi o autor. Tomei a liberdade de revisitar o texto para estendê-lo a vocês que acompanham o meu blog. Fico muito grato ao André e também ao pai dele. Que Deus os abençoe, assim como ao autor, onde quer que ele esteja, pela sensibilidade e pela riqueza do texto. O resultado segue abaixo:
Antigamente em volta dos campinhos de futebol de várzea desse país, existiam exuberantes pés de mexerica natural. Pra você que nunca viu, eu conto o que era esse pé de mexerica natural. Seu agradável aroma o vento levava a quilômetros de distância, com a mesma rapidez com a qual costumam se espalhar os boatos. A casca desse suculento fruto era verde-amarela em Abril e da cor do sol em Maio. Seus gomos vinham privilegiados de todas as doçuras da terra. Todos os que tiveram a oportunidade de usufruir de tais delícias passaram momentos da vida tão leves como pássaros. Não eram como os desafortunados de hoje em dia, em cujas línguas repousam o sabor dos conservantes e dos agrotóxicos industriais.
Antigamente em volta dos campinhos de futebol de várzea desse país, cantavam os galos. Galos índios e carijós! Eles mostravam as esporas com a dignidade hoje perdida por machos confinados em espaços deprimentes, muitas vezes, apenas tratados como matéria prima para a produção de alimentos. Eles eram livres e fecundavam suas fêmeas sem qualquer imposição genética. As galinhas a eles se submetiam de modo doce e natural. Também ciscavam e remexiam a terra, saciando a fome do modo como Deus as ensinou.
Antigamente em volta dos campinhos de futebol de várzea desse país, pastavam cavalos inteiros (não castrados), brancos, pretos, baios, tordilhos, porém, todos preservados em sua dignidade e nobreza de procriador. Cercas não eram suficientes para privá-los de uma aventura equinamente amorosa, dado o vigor de suas virilidades.
Antigamente em volta dos campinhos de futebol de várzea desse país, rondavam cabras saltitantes. Nunca elas encontravam em suas trilhas, restos de um mundo plástico e poluente. Ao lado delas, cabritos e bodes berravam livremente fazendo uso de todos os seus direitos animais.
Antigamente em volta dos campinhos de futebol de várzea desse país, encontravam-se caramanchões de maracujá, qual suco provia o sabor das coisas que Deus criou, antes que os homens as tornassem amargas.
Antigamente em volta dos campinhos de futebol de várzea desse país, vicejavam salsinhas, cebolinhas, folhas de louro, de hortelã, entre todos os cheiros verdes que temperavam o viver. Tais ervas conferiam mais prazer às refeições, com o toque especial, que só mamãe conseguia dar. A combinação das essências, faziam um simples arroz com feijão tornar-se um prato de elevado requinte.
Antigamente em volta dos campinhos de futebol de várzea desse país, encontravam-se melancias de carregar no colo. Elas saltavam aos olhos mais distraídos e, depois da pelada, eram levadas ao regato mais próximo e sob a sombra de uma paineira livre e frondosa, aquele grande coração vermelho era dividido entre os Pelés, Pepes, Amarildos, Zitos, Garrinhcas e Gilmares de então.
Antigamente em volta dos campinhos de futebol de várzea desse país, as carambolas estavam ao alcance de todas as mãos e mostravam que até o lado azedo da natureza servia de gozo e alívio, quando a fome tornava-se menos importante do que fazer o 12° gol de uma partida que havia virado ao 6º deles.
Antigamente em volta dos campinhos de futebol de várzea desse país, as vacas, insolitamente mansas, desfilavam sem pressa, pastando aqui e ali, selecionando gramas e moitas, ruminando e babando saúde, transportavam, em seus fartos úberes, a seiva nobre da vida, cuja maior porção, todas as manhãs, era entregue aos baldes ao retireiro local e, mesmo assim, ainda faziam a alegria dos bezerrinhos que corriam e saltitavam pelos arredores.
Hoje, olho com nostalgia para os campinhos de futebol de várzea desse país, pois já não existem, senão em minhas mais doces memórias. O concreto nos assaltou a poesia da vida. Ergueram-se espigões de cimento e aço, construíram-se condomínios, canalizaram os regatos, sequestraram as paineiras, exilaram carambolas, melancias, vacas e cabritos. A terra que sobrou se inundou de cana, pois o mundo moderno tem sede de etanol.
Os galináceos perderam seu status de liberdade. As gemas dos ovos passaram do vermelho vigoroso ao amarelo morto. Suas carnes perderam o sabor da roça em favor das rações articialmente anabolizadas. Vacas confinadas transformaram-se em pequenas usinas de leite. Cavalos perderam sua nobreza e os campinhos de futebol de várzea, tornaram-se quadras cimentadas; franquias com nomes de jogadores famosos e, em seus arredores, não há mais do que muros e telhados, sob os quais se encontram cantinas a inflar as crianças de calorias, guloseimas e bobagens. Contudo, provavelmente a maior das perdas, foi a poesia que se encerra no viver naturalmente.
Marcondes, revisitando texto de autor desconhecido. 21/03/2015 19:06
4 comments on “Não se fazem craques como antes!”