Quando eu ainda era criança!

000000000000000 Lua Cheia

Moro em Santo André há décadas, porém, nasci em uma pequena casinha branca de janelas azuis, construída pelas mãos de meu próprio pai, com a ajuda de um tio. Foi levantada em um sítio que pertencia ao meu inesquecível avô. Longe umas duzentas braças da casa dele, para ser mais preciso. Apesar de ser meu avô, todos o conheciam por Nenê. A tal casinha era uma habitação modesta, sem forro, com fogão de lenha, mobiliada com armários e móveis rústicos. As camas eram instaladas com colchões de palha de milho e os travesseiros eram acolchoados com paina. Para quem não sabe, paina é um tipo de algodão que envolve as sementes dos frutos das paineiras. Ao redor da casa e espalhadas aleatoriamente, assim como a natureza as concebeu, haviam laranjeiras, coqueiros, macaubeiras e goiabeiras.

Galinhas cacarejavam e ciscavam soltas pelo terreiro em volta da casa e alguns pequenos leitões fuçavam alegremente a terra da baixada, próxima ao rio Jaguari, em busca de raízes suculentas, quando não estavam à cata de goiabas maduras que caiam ao chão do mangueirão, que também ficava há uns pouco metros da casinha. O rio passava há uma breve caminhada por meio das trilhas que o gado havia aberto no pasto. Em minhas doces memórias ainda vejo bandos de anus brancos pousando nas sangras d’água à beira do brejo. Assanhaços, tico-ticos, sabiás laranjeira, coleiros e bigodinhos saudando as manhãs de sol. Colibris supersônicos cortejando as flores das laranjeiras, curruiras, matraquinhas , joões de barro, bentevis, tejos, quero queros e munjolinhos, cuidavam da trilha sonora ao longo do dia.

Ao anoitecer, me encantava com os vagalumes, que me faziam crer que as estrelas haviam descido do céu para festejar as noites frescas de junho, junto ao coaxar das rãs, dos sapos carpinteiros, do cantar dos grilos, corujas e curiangos. Ainda não tínhamos o velho rádio de válvulas. Vovô sim! Era uma delícia despertar na roça ouvindo o compadre Fica Fica, da rádio de São João da boa vista, anunciando: “Cumpadre Zé Capoeira! Prega Fogo”!”. De todo modo, em minha casa não nos faltava música. Às tardinhas, depois da roça, papai empunhava a violinha caipira, talhada pelo Sr Sebastião Lino. Um senhorzinho apaixonado por moda de viola, que ficou famoso nas redondezas pelo domínio de sua arte como luthier. Uma vez, ele presenteou o meu pai com uma violinha decorada com fórmica branca,  muito linda! Eu babava naquela violinha! Só babava, porque ainda não sabia tocar.

Entravamos às noites ao som da viola bem dedilhada ou, muitas vezes ouvindo papai cantar canções sertanejas ‘raiz’, com o meu tio Tonho, irmão mais novo do meu pai. Muito do repertório deles ainda ecoa com saudade em minhas melhores lembranças. Suas canções prediletas contemplavam o repertório de Pedro Bento e Zé da Estrada, Liu e Leo, Zico e Zeca, Tonico e Tinoco, Vieira e Vieirinha, Benedito Gonçalves, Zizico, Tedy Vieira entre tantos outros que não mencionarei para não os cansar. Porém, papai e titio também compunham músicas próprias. Algumas até surpreendentes, a julgar pela pouca escolaridade do seu José e do seu Antonio Marcondes. Ambos, junto de meu avô dominavam a arte da catira. Os dois irmãos chegaram mesmo a formar uma dupla sertaneja. Diogo e Dioguinho, era o codinome que se impuseram.  Chegaram a fazer fama, embora como amadores, ao ponto de serem amigos de artistas famosos como Goiá, João Mineiro e Marciano, Abel e Caim, Vieira e Vieirinha, Nenete, Dorinho e Nardelli entre mais alguns. O destino, no entanto, não quis que se tornassem profissionais. Das razões que os levaram a não gravar, apesar de convites que tiveram, até da Chantecler, tenho apenas pistas, porém, nenhuma certeza.

Ali, naquela casinha, vivi até os 3 anos de idade, quando então nos mudamos para o A do ABC Paulista. Essa foi a penúltima mudança, de mais de uma dezena delas, que meu impulsivo pai empreendeu ao longo de sua atribulada vida de lavrador, de conferente de ensacamento de batatas, de faxineiro, de operador de máquinas, de inspetor de qualidade, de supervisor de seção. Afora os bicos de barbeiro, passarinheiro, mascate e músico. O cara sabia castrar e abater porcos e porcas, sabia aplicar injeção, curava berne e bicho de pé, sabia andar a cavalo, pilotar carroça, amansar bois entre tantas coisas mais. Às vezes penso que se tivesse estudado, não me surpreenderia, se chegasse a ser algum tipo de Samuel Klein da vida! Me ensinou a pregar botões, fazer barra tipo ‘pé de galinha’ em calças, fazer arroz mexido com ovo, mingau de fubá e por aí vai!

Porém, minha intenção hoje é dar outro rumo a essa prosa. Apesar de ter vindo cedo para a cidade grande, todas as minhas férias, passava no sítio do meu vovô. Cara! Curti muito meu avô. O velho era mágico! Chegava a passar de mês inteiro com eles. Na roça o povo dorme cedo, oito horas da noite mais ou menos, porque também madrugam. Porém, vovô era diferente. Embora levantasse cedo, dormia tarde. Para mim, que desde então era notívago, era um prato cheio.

Toda noite ficávamos, ele e eu, sentados ao fogão de lenha. Depois que fazia o seu cigarrinho de palha calmamente, como todo bom mineiro, tirava um tição de fogo do fogão, acendia bem o cigarrinho, dando umas duas baforadas e daí começavam as histórias, que iam das proezas do doutor Bié Luiz, um famoso homeopata da região, que salvou muita gente da morte certa, até um semi trolley, um tipo de carroça puxada a cavalos, que nas madrugadas assombrava as pessoas que tardavam no voltar para casa, quando em alta noite transitava sozinho, sem cocheiro e sem cavalos, pelas estradas de terra da região.

Vovô se queixava de sua insônia. Dizia que só havia um meio para que dormisse bem. Afirmava, categoricamente, ser uma pessoa sobrea, ao menos até as 16 ou 17 horas. Porém, depois desse horário, se não tomasse uma pinguinha, não havia meio de dormir. Daí, entre um cigarrinho e outro, entre uma pinguinha e outra, mais uma história e outra, ia-se lá, se me lembro bem, um terço de um garrafãozinho de três litros da branquinha! O velho era bom nisso! No casamento de minha irmã mais velha, fez uma aposta com os netos pra ver quem era melhor bebedor e derrubou ao menos uns cinco deles. E ele ó! Ficou firme como se tivesse tomado água! Dessa eu escapei! Não por nada, só porque era criança nesse tipo de prazeres da vida!

Vovô, além de sapatear bem, também gostava de cantar. Lá pelas tantas, depois de um ou dois cigarrinhos, tomava uma dose de cachaça, limpava a garganta e saía puxando uma segunda voz, para que eu lhe acompanhasse com a primeira. Fazíamos, então, um dueto. Lá fora a noite à mercê dos grilos e sapos e, dentro da velha casa, eu e o meu parceiro entoando uma moda de viola bem casada, cantada no dialeto dele: “Vou quexá da minha vida, ora veja se eu tenho razão, as moça que me namora eu não tenho a curpa não, por eu ser dilicadinho, miudinho de feição; por eu ser namorador, tenho gozado um vidão!” Daí, antes do segundo verso ele soltava um: Aêêêê Chico! (eu mesmo). “Namorei a Ordelina, ora veja que facilitação! O pai dela é um home bravo parece ser valentão e tem a cara fechada, tem bigodes como um leão, que dá um rugido na terra e dá um balanço no chão! ”  Creio que há mais um ou dois versos, porém, infelizmente não me lembro!

Vovô me ensinou a pescar com varas de espera! Ao longo do dia, pescávamos alguns lambaris no “corguinho” (pequeno córrego) ou eu os apanhava com uma peneira. À tardinha, no cair da noite, íamos para a beira do Jaguari. Escolhíamos alguns bons poços, lugares onde a água do rio parecia mais funda e formava algum remoinho, fincávamos bem as varas no barranco e jogávamos a linha com os lambaris iscados, para deixar de espera até à manhã seguinte. A ideia da pesca de espera surgia, na maioria das vezes, em duas ocasiões: nas noites de lua cheia ou depois das chuvas fortes, quando a água fica bem barrenta. Em ambas as situações, vovô dizia que era bom pra pescar bagres.

No mato, à beira do rio, era muito bom estar com vovô, pois com a fumaça do seu cigarrinho de palha e fumo de corda, os pernilongos ficavam bem longe da gente. Com a lua cheia, as trilhas se destacavam e dificilmente pisávamos em algum juá bravo, desses que os espinhos fincam no pé. Vovô, contudo, usava sapatos só para ir à cidade uma vez por semana. Pois fazia as compras para suprir a cozinha da dona Emília, minha avó, aos sábados e aproveitava para fazer a barba na barbearia do Gumercino. Andando sempre descalço, jamais soube o que é uma podóloga. A sola do pé do vovô entortava prego fino e quebrava espinho de macaubeiras, de tão grossa. Se um dia decidisse fazer o pé, ia ser necessário um esmeril de desbaste!

Pois bem! Nessas noites eu quase nem dormia, na ansiedade de ver o resultado das varas de espera na manhã seguinte. Muitas vezes chegamos a fisgar traíras e bagres de mais de quilo. Aquilo pra mim era de uma alegria indescritível. Vovó Emília os fazia frito na gordura de porco, apenas passados no fubá ou na farinha de trigo. Com um limão galego espremido por cima, acompanhado de uma pratada de arroz molhadinho e um bom caldo de feijão, mais uma salada de chuchu refogado! Hummm! Pra que mais não?

Armávamos de quatro a cinco varas robustas de anzol grande e quase sempre nos dávamos bem em duas ou três delas. Pois é não gente! Mas o que é que isso tem a ver com a nossa vida de hoje? Talvez, absolutamente nada! Contudo, creio que muitas vezes fazemos algo parecido em nossas vidas organizacionais. Propagamos nossas músicas, histórias e argumentos, porém, nem sempre com o profissionalismo que deveríamos, jogamos nossas linhas com as iscas na água, ou seja, apresentamos nossas ofertas, porém, não acompanhamos o desenrolar das aprovações e deixamos o follow-up para a semana seguinte. Nesse meio tempo, muitas vezes o peixe escapa, passa um pescador “penetra” ou uma lontra e rouba o nosso peixe fisgado e depois ficamos a olhar pra lua!

Com certeza esse não foi o melhor final de post que eu já escrevi, mas também, sem o cigarrinho, a pinguinha e a companhia do vô Nenê e à essa hora 03:11, as engrenagens do meu pobre cérebro já estão fervendo. Minha esperança é que ao menos os parentes que seguem o meu blog, possam matar um pouco da saudade dos bons tempos que vivemos juntos, nas férias, no sítio do seu José Diogo Marcondes.

Grande abraço a todos!

Marcondes   02 de outubro de 2015     03:14

6 comments on “Quando eu ainda era criança!”

  1. Sandra Regina Vicençotto Rodrigues Responder

    Bom dia Marcondes.

    Bom começar o dia com uma leitura assim.Vc esqueceu da Maria Jacinto e seu perfume,,,

    Abraço dos amigos

    Sadra e Rodrigues

    • marcondes Responder

      Estimada Sandra!
      Muito obrigado pelo comentário e pela lembrança.
      Na minha terra chamamos os lírios do brejo de Maria Jacinta.
      Também me esqueci do canto das cigarras pousadas nos galhos das paneiras e o zumbido de abelhas e marimbondos caboclo!
      Grande abraço a todos por aí!
      Marcondes.

  2. Adalberto Responder

    Caro Marcondes,
    As historias parecem iguais, para todos, mas, sempre tem um personagem diferente que faz a diferença, Tanto no nosso tempo de criança, como nos nossos dias atuais. Abençoados os que fazem a diferença, sem fazer diferença entre os iguais. Abraço e bom final de semana!

    • marcondes Responder

      Olá meu bom amigo!
      Muito obrigado pelo comentário.
      Isso mesmo!
      Te entendo e concordo contigo. Muito correto o teu ponto de vista!
      Obrigado pela companhia!
      Grande abraço!
      Marcondes.

  3. Aldeci Responder

    Olá Marcondes, eu sempre leio depois. Como são muitos e-mails e alguns pedem respostas para ontem, eu deixo para ler quando as coisas se acalmam. Se fosse na vida da roça não teria este problema e ao invés de e-mail, poderíamos contar essas histórias ao redor do fogão de lenha. Acredito na relaçao de confiança das pessoas que vivem de maneira humilde mas cheia de prazer. Essa confiança que qualquer cliente busca.Grande abraço

  4. André Valim Rebolho Responder

    Caro Marcondes, Linda historia.
    Quase uma metáfora, temos que lançar nossas varas ter o cuidado de escolher a melhor isca e acompanhar o andamento para o peixe não escapar.
    Meu pai que viveu boa parte da sua juventude no interior, Mirandópolis, quase divisa com Mato Grosso, conta as mesmas historias , muitos chamavam meu pai e meu avô de caipiras , pessoas com pouco conhecimento, mas veja como as lições que eles nos passaram.

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